A mocinha andava muito da preocupada. Havia algo que não lhe cheirava bem. Seus passos estavam escorregadios, justo ela, sempre tão equilibrada por conta dos seis dedos que tinha em cada pé. As cores? Não entendia as cores. Gradativamente, o mundo tingia-se de marrom. Sentia-se enganada pelos seus sentidos.
Ao seu redor a vida ocorria como sempre ocorreu. Menos para ela. Para a mocinha, nada dava certo, nada dava, ela mesma não dava de uns tempos pra cá, desde quando pôs reparo em sua preocupação, que virou angustia, que virou paranóia, que virou obsessão por galochas.
Galochas! Sim: galochas protegeriam seus doze dedos das ruas pastosas que cercavam a cidade. Arranjou logo sete pares, um para cada dia da semana. Eram compridas, de grafismos vibrantes, dessas que estão na moda. Quem a encontrava logo dizia “que bonitas suas galochas coloridas”, mas para ela não adiantava, tudo era marrom.
Ao ver a mocinha de galochas andando tão cabisbaixa, o povo pensava que estava apaixonada. Não notavam que seu foco era o chão. Ela não descuidava dos passos por um momento e, de tanto medo de se distrair, decidiu vestir um cabresto. Assim, ela mesma puxava sua cabeça a qualquer tentativa de seu corpo ficar ereto. Para baixo e avante, ela trotava.
A mocinha de galochas e cabresto ainda andava muito da preocupada com os odores da vida. Cismou que precisava de máscaras perfumadas. Mas essas não estavam na moda, nem existiam. Então customizou: comprou caixas de máscaras descartáveis na loja de equipamentos médicos em frente à Santa Casa de Misericórdia e lascou perfume nelas. A princípio o aroma não agradava, mas acostumou-se, acostuma-se com tudo. Só faltava dar jeito nas cores, meu Deus, as cores!
De galochas, cabresto e máscara, a mocinha trotou até a Vinte e cinco de Março em busca de visão multicor. Pediu à vendedora da loja de fantasias que lhe mostrasse os óculos mais coloridos. A vendedora jogou diversos modelos em uma capa de Super-Homem e se abaixou para mostrar a mercadoria, pensando “se aparecer bicho mais corcunda que esse, estoura que é furúnculo”. A mocinha colocou todos os óculos que pôde e foi para o metrô.
Nesse ponto, o povo, que achava graça, agora torcia o nariz. E quando passava a mocinha, viravam a cara. E quando ela tentava mostrar por que o mundo era marrom, o povo escorregava em fuga. Quem seria corajoso o bastante para dar razão à mocinha? Ninguém sentia o que a ela sentia, por isso ninguém entendia.
A mocinha de galochas, cabresto, máscara cirúrgica perfumada e muitos óculos coloridos passou de preocupada a conformada. Preferiu viver na merda a dar explicação.
* apresentado no sarau da academia | 02jul08
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
Vanz
Eu realmente adoro muito o q vc escreve.
Esse conto é incrível!!!
De tirar o fôlego.
Como foi bom te conhecer esse semestre...
Bjs
Thaís
poxa van, e eu?
mereço ficar?
bjs
Postar um comentário