sexta-feira, fevereiro 19
"love you" o caralho
Põe a culpa na testosterona, Leninha! Fala que é por causa da Seleção Natural. Não é você que vive vendo aqueles programas de instinto selvagem na TV a gato? Não foi você que me contou que quanto maior o tamanho desse dedo bobo que a gente tem na mão, mais hormônio de homem o cabra recebeu na barriga da mãe? Então não liga, boba. Não fala nada. Não quebra nada. Fica do jeito que você sempre ficou. Nada de fuçar no celular. Nada de remexer nos bolsos. E se achar mais algum papelzinho, dobra e põe perto da carteira pra ele ver e não esquecer de pegar. Faz agrado, mulher. Compra cerveja de garrafa. Leva a Brasília pra encher o tanque. Manda engraxar o pisante. E tudo com seu dinheiro, heim. Tudo de surpresinha. Você tem que levantar as mãos para os céus, isso sim. Tanta maluca aí pela noite, tanta desvairada com decote até o umbigo na firma. E onde é que ele deita a cara pra dormir? Na sua casa, Leninha! Nem que seja no sofá, mas é debaixo do seu teto. Outro dia a Dora contou que conseguiu três gavetas no roupeiro só pra ela. Não é um sonho? Uma gaveta de meia, uma de calcinha e outra só pra sutiã. Tudo separadinho, pensa só. E não teve segredo. Foi só fazendo agradinho, pedir com jeitinho e ter que deixar a primeira gaveta pro marido guardar as cuecas e meias dele. Ela terminou contando que a última gaveta também foi exigência do trato. Aí eu perguntei "pra pôr o que se já tá tudo na gaveta de cima?". Afe ela fez uma cara e emburrou o bico dizendo que não sabe e tem raiva de quem sabe. Viu só? Dora é que é mulher de verdade. Não é bonita, mas é de uma obediência de dar inveja. É um espelho para toda casada! Foi parar num telemarketing que é pra ninguém olhar na fuça dela, só por isso que o marido deixou ela sair daqui. Nós duas é que somos umas trouxas que vamos morrer cegas de tanto enfiar linha em buraco de agulha. Mas ouve o que eu tô te dizendo, Leninha: chega em casa e faz carne-louca bem molinha, passa no seu Joaquim e compra uns dois pães branquinhos pra raspar no prato depois. É nos detalhes, Leninha, nos detalhes que se conquistam três gavetas.
quinta-feira, fevereiro 18
Minha bonita
Depois de limpar as marcas de pasta de dente na pia, escarrou algo acinzentado nas mãos e misturou vagarosamente as substâncias díspares. Preparou com o frescor da menta e a secreção pigarreada um único unguento que tornou-se o alívio que o rosto pisoteado pedia. Deixou o elixir repousando na palma direita enquanto o indicador esquerdo apontava para si sem unhas lascadas nem julgamento. Pincelou a mistura inicialmente no corte mais leve da maça do rosto, em movimentos circulares. Repetiu-se algumas vezes até tomar toda a superfície, da testa ao queixo.
O espelho a sua frente imitava teia de aranha. Viu-se partida. Levou o mesmo dedo indicador até as fissuras do vidro e acariciou cada fenda. Sentiu todos os cortes, refez todo o desenho. Seria uma tentativa de recompor-se. O que conseguiu foi se sangrar.
A pasta seca ardia e caia esfarelada pelo queixo e peito levando consigo filetes da pele que um dia alguém tanto quis. Então se fez bonita. Com o dedo pingando vermelho pôs batom e blush. Abriu a gaveta e cavou umas fivelas, um pente. Repartiu o cabelo com ares de Madalena e não gostou. Preferiu um coque-banana displicente, desses que viraram moda recente. Moldou farelo por farelo do que havia no rosto arenoso até criar seu novo reflexo. E sorriu uns dentes quebrados ali misturados na pia, com a pasta.
para o projeto coletivo literatura ordinária
mais em as canções de f. | http://fellipefernandes.wordpress.com
O espelho a sua frente imitava teia de aranha. Viu-se partida. Levou o mesmo dedo indicador até as fissuras do vidro e acariciou cada fenda. Sentiu todos os cortes, refez todo o desenho. Seria uma tentativa de recompor-se. O que conseguiu foi se sangrar.
A pasta seca ardia e caia esfarelada pelo queixo e peito levando consigo filetes da pele que um dia alguém tanto quis. Então se fez bonita. Com o dedo pingando vermelho pôs batom e blush. Abriu a gaveta e cavou umas fivelas, um pente. Repartiu o cabelo com ares de Madalena e não gostou. Preferiu um coque-banana displicente, desses que viraram moda recente. Moldou farelo por farelo do que havia no rosto arenoso até criar seu novo reflexo. E sorriu uns dentes quebrados ali misturados na pia, com a pasta.
para o projeto coletivo literatura ordinária
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sábado, fevereiro 13
Sinhá rainha
Sinhá Rainha pegou uma quinzena e foi mudar.
Falou para o chefe que não ia levar notebook nem celular.
Falou pros clientes que ia mas já ia voltar.
São só quinze dias, dias que passam já.
Mas hoje Sinhá Rainha começou sem saber.
Sem saber muito direito o que tinha que fazer.
Já mudou de lugar tantas vezes sempre com diferentes por quês.
Por que hoje é diferente de tudo que ela podia viver.
Quando a Sinhá Rainha fez arruaça pelo que está por vir,
tinha gente barro e ruindade não deixando ela ir.
Mas tem pai de santo, Judas Tadeu e seicho no ie dizendo sim.
Ela vai, ela vai, ela vai. E ela vai rir.
Então Sinhá Rainha não queria olhar para os lados.
É que tinha medo de pedras, trovoadas e mau-olhado.
Buscou caixas de papelão, buscou papéis amassados.
Pôs um pé na frente do outro e seguiu de topete dourado.
Falou para o chefe que não ia levar notebook nem celular.
Falou pros clientes que ia mas já ia voltar.
São só quinze dias, dias que passam já.
Mas hoje Sinhá Rainha começou sem saber.
Sem saber muito direito o que tinha que fazer.
Já mudou de lugar tantas vezes sempre com diferentes por quês.
Por que hoje é diferente de tudo que ela podia viver.
Quando a Sinhá Rainha fez arruaça pelo que está por vir,
tinha gente barro e ruindade não deixando ela ir.
Mas tem pai de santo, Judas Tadeu e seicho no ie dizendo sim.
Ela vai, ela vai, ela vai. E ela vai rir.
Então Sinhá Rainha não queria olhar para os lados.
É que tinha medo de pedras, trovoadas e mau-olhado.
Buscou caixas de papelão, buscou papéis amassados.
Pôs um pé na frente do outro e seguiu de topete dourado.
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