quinta-feira, maio 15

O galo da temperatura

Quando eu era criança e ainda não tinha vontade própria, não que eu não tivesse vontade própria, mas, por ser criança, minha opinião não influenciava a vida familiar, enfim, quando eu era criança e não tinha vontade própria, era obrigada a ir para Aparecida do Norte toda vez que minha avó materna ou minha avó paterna vinham para São Paulo. E elas vinham todo ano. Uma vez por ano cada.

A romaria começava no metrô Santa Cecília, fim da linha leste-oeste na época. Antes descíamos a Avenida Angélica e virávamos na Alameda Barros, tudo a pé, que é mais saudável, dizia minha mãe. Na estação, minha avó materna tinha medo de escada rolante achando que seria engolida pelos degraus, enquanto que minha avó paterna tinha certeza que cairia no vão entre a plataforma e o trem. Nunca ninguém foi engolido, nem se estrebuchou no vão.

Multidão na baldeação da Sé e finalmente chegávamos a estação Tietê, onde descíamos acoplados à massa humana que circulava entre a quase total ausência de placas de comunicação. As pessoas iam, vinham, se perdiam. Mas nós, não: sabíamos direitinho onde era o guichê da Cometa e em quais plataformas estavam os ônibus para o Vale do Paraíba.

No ônibus meu desconforto continuava. Até os dez anos de idade a criança podia ir no colo. O problema é que, aos dez anos, eu já media 1,55 metro. Então eu ficava de colo em colo, amassando as tetas da mãe e das tias. As avós cochilavam tranquilamente durante as duas horas do meu martírio-mirim.

Na rodoviária de Aparecida, eu chegava exausta e bem puta da vida, sem saber que estava puta da vida porque, como disse, era criança e ainda não sabia o que é estar puta da vida. Mas, enfim, o dia prosseguia, comigo puta da vida mesmo: era visita à basílica velha, visita à basílica nova e, entre elas, visita à uma ponte sem fim, uma sala dos milagres sem fim e uma missa sem fim. Por fim, eu voltava deitada no chão, entre os espaços dos bancos do Cometa, dividindo área com as baratinhas.

O Santuário de Aparecida do Norte tinha tudo para ser minha desgraça particular, mas foi lá, visitando a feirinha de artesanato, que encontrei o real sentido da minha vida: o galo da temperatura.

Este curioso artefato turístico é pura e simplesmente um galo que muda de cor de acordo com a temperatura. Está calor, ele fica rosa-claro. Está ameno, fica lilás. Está frio, roxo. Está a maior friaca, ele fica azul arroxeado quase preto.

Foi observando o galo da temperatura que entendi meu dom. Deus me deu uma má formação congênita dos vasos sangüíneos, o que formou uma lesão na pele conhecida como hemangioma. Esta lesão, normal a 50% dos bebês, desaparece até um ano de idade. Mas o meu hemangioma ficou – e ficou no pé direito, para conectar-se diretamente ao solo, variando entre as nuances rosa-clara até quase preta, dependendo do clima. Meu dom, senhores, é que eu sou a galinha da temperatura. Amém.

6 comentários:

Unknown disse...

Texto engraçadíssimo, Vanz!
Já disse tudo ontem, mas repito: você conduz o leitor para outra dreção e de repente: PAF! a bomba! ri muito... minha mãe tinha uma galo de temperatura, mas a sua deu mais sorte! hahaha
beijão!

Ana Paula Marques disse...

Por favor, conta mãe sobre a sua infância!
Adoro as suas memórias psico-sensoriais.

bêjo,

Ana

Ali Abou Zeenni disse...

Meu, sinceramente, pára tudo! hahahahahahahahahha me racho o bico quando leio!!! Perfeito! começa com o seu ar, que eu já estou me acostumando suavemente, e de repente manda todo mundo se rachar!

beijão

Ali

Anônimo disse...

Vanzzz Lindaaaaaa!! Mewww AMEIII seu temaa secretooooooooo e esse texto nem fala, né?!haha Rachantee!!! Sou seu fã!!! Também quero descobrir o verdadeiro sentido da minha vida..hahaha

Mtooo bommm!!!

Millll beijossssssssssssssssss!!! Amém!!rs

Anônimo disse...

Tesudinha da Febem,
minha tatuagem de caneta bic,
eu simplesmente adoro vc, mesmo em tão pouquissimo tempo.
Sabe, vc abre espaço no meu pulmão concentrado de ar.
Beijão.

Débora Costa e Silva disse...

Poxa, perdi isso do tema secreto...não sei qual é o tema, não...
mas pelo menos agora entendo quando as pessoas apontam para o seu pé no meio da aula e sorriem...hahahha
adorei a saga da infância, apesar de ter passado por outras situações, claro, me deu muita nostalgia!
Beijos!