quarta-feira, junho 25

Carrossel*

* Vanessa Guedes por Débora Costa e Silva, jornalista, "VP da Diretoria AIC" e futura escritora

Foi assim, meio de repente, da noite pro dia, que tudo se transformou. E foi assim, meio de repente também, que ela percebeu que havia algo de muito estranho naquele dia. Demorou pra se tocar, talvez o mau humor tenha dificultado um pouco a audição, a visão, o olfato e o tato. Toda segunda-feira era assim: irritante, neurótica, cara de TPM. Por isso não tinha dado muita importância quando, ao calçar seu scarpin vermelho, as batidas do coração ecoaram pela sala. Achou que fosse a vizinha freqüentadora de raves que tinha aumentado o volume do som. Também não ligou muito quando notou manchas igualmente vermelhas nos azulejos creme do hall de seu prédio, justo nos quadradinhos onde o salto batucava “clec-clec”. Pensou que fossem manchas de vinho derramadas ali ao longo da festa infernal que os adolescentes fizeram na noite anterior.

Foi só quando, ao ajustar o retrovisor de seu carro, se olhou no espelho e se viu vermelha por completo. Não, não era o frio, raiva, vergonha, nem o blush excessivo. Não era cor de maçã, caqui, morango ou melancia: era vermelho sangue – será que estava vivendo o comercial da bebida que faz tudo ficar vermelho, o lance da Red Passion? Mal começou a espernear de pavor, o som do carro ligou sozinho e berrou de volta: “e subo bem alto pra gritar que é amor”. O grave de Ana Carolina fez tremer o Corsa. Remexeu tanto que foi obrigada a agarrar o volante e pisar fundo no freio, para ver se aquilo tudo parava. Não parou.

Para onde ir? Hospital, polícia, trabalho, casa do namorado, amiga, mãe, hospício? Psicóloga, devia estar sonhando, talvez vivendo uma viagem astral das braba. Foi seguindo pela avenida, pois ali dentro da garagem é que não ia ficar – ainda não perdeu o medo infantil de ficar sozinha no escuro, principalmente em casos extremos como este. Depois de meia hora parada no trânsito, já estava se acostumando com a vermelhidão e o som que gritava de repente – não era o tempo todo, eram só certas frases de algumas canções. “Você precisa é de um homem pra chamar de seu, mesmo que esse homem seja eu”. Cansou do abre-fecha do semáforo, de mandar o rádio calar a boca e saiu do carro para fumar e ver o que estava acontecendo.

Foi então que viu o cinza-grafiti do asfalto se colorir de roxo (vai ver que vermelho com cinza dá roxo, não lembra muito bem das misturas de tintas que fazia nas aulas de artes do primário), o motor da Kombi parar de roncar e emitir um “pour-elise” de caminhão de gás, o motoqueiro assobiar “Detalhes”, do Roberto, ao invés de “Créu”, a fumaça insuportável do ônibus ao lado exalar o perfume daquele ex-filho-da-puta que não queria nem lembrar o nome e as modelos dos cartazes grudados nas paredes dos edifícios a tirarem as poucas roupas que vestiam.

- Onde está minha terapeuta?!? Esse sonho tá indo longe demais, já acordei, já era para ter terminado essa palhaçada!

A baderna corria solta. Cada hora surgia alguém diferente, com uma cor de pele mais bizarra que a do outro – alguns tinham até estampas – cantando um rock, frevo, funk, sertanejo, enquanto as pombas que moram em São Paulo se reuniam para uma convenção. Rodopiavam em volta dos prédios, apresentando uma coreografia cuja modalidade era difícil de especificar. Como se não bastasse o mundo esbanjar alegria, continuava como um pimentão e seu carro balançando sozinho.

Chutou o carro de raiva. Ao invés de parar de tremer, como esperava, balançou ainda mais. O chão revidou e tremeu – e tremia sem parar. O motoqueiro jovem-guarda foi lhe acalmar: levou um tapa na cara. Ela começou a chorar. E a mandar todos calarem a boca, à merda, à puta que os pariu. A vertigem daquele mundo mágico, que girava feito um carrossel (até as cores gritantes e bregas eram tais como as do brinquedo), a deixou com vontade de vomitar. Não conseguia. Então cuspiu, cuspiu toda saliva existente em seu corpo, cuspiu na cara do motoboy, do caminhoneiro sem-vergonha, nas pombas, no sapato vermelho, na palma da mão. Era de um alívio tão grande que não parou mais de cuspir.

Foi uma buzina que lhe fez perceber que o semáforo abriu, os carros já tinham ido embora, as pombas voado para longe, o rádio desligado, o asfalto acinzentado...porém, tudo encharcado. O céu se abria como se estivesse a recuperar o brilho depois de uma longa enxurrada. Ela também estava molhada e tudo tinha o gosto de seu hálito. Voltou ao carro, silencioso e imóvel, quem diria, e engatou a primeira. Não foi para a psicóloga, nem ao hospital, polícia, trabalho, casa do namorado, amiga, mãe, hospício. Voltou para casa para tomar um banho e limpar a camada gosmenta de cuspe que lhe vestia, a fim de impelir ralo a baixo toda angústia, raiva, decepção, tristeza que já engoliu na vida e despertou de uma só vez naquela segunda-feira.

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