sexta-feira, maio 29

rendida

Querido Mestre Marcelino,
há quanto tempo. Desde 22 de abril não tenho a felicidade de sentar contigo, junto com umas vinte pessoas mais, para comer literatura in natura.

Eu faltei por que fui tomar cerveja. É. Cabulei pra ver as amigas. Mas... sabe arrependimento? Eu tenho. Vê se pode: uma delas partiu mais cedo, a galope, pra encontrar um cara que estalou os dedos. Naquela mesa, comendo filé com "se liga minha filha", eu fumei minha última ponta de esperança na independência sentimental feminina.

Parece castigo. Ou praga. De lá pra cá toda quarta-feira foi de drama. Meu vô morreu. Meu computador corrompeu. Minha chefe pirou. Meu corpo variou. Para cheirar confiança no meu taco, mergulhei num pó sem fim.

Quando fugi, tivemos Glauco Mattoso entre nós (parecia o fim da minha cegueira). Nós conversamos pouco, o suficiente para eu timidamente me gabar de suas palavras: "você não pode sumir assim não! justo agora que seu texto tá tão..." - não lembro a palavra que você usou, mas foi elogio que valeu cada cólica literária.

Depois disso, as quartas-feiras firmaram-se ácidas. Pingaram no ouvido como não-inspiração. Mas eu poderia insistir, não poderia? Lutar, não me conformar, mandar tudo a merda, caralho.

Nesta última quarta, me rendi. Ao sistema. Ao trabalho. Ao comum. Porra, Marcelino!: eu desisti da oficina.

Quer maior ironia? Eu reclamo que me falta conflito.

segunda-feira, maio 25

sogrices

- Você só pinta a unha dessa cor? Não gosto.
- O que acontece que ele nunca está em casa?
- Muito bem, agora é só arrumar a sua postura... assim... melhor.
- Mas você deixa ele ficar lá embaixo até essa hora?
- Eu não sei qual é a orientação dela para decoração... mas essa bonequinha tinha que ficar no banheiro, não na sala.
- Levei uma caixinha pra casa e, quando abri, vi que era um porta-retrato. Seu.
- Você tem que dominar a empregada.
- É melhor demorar bastante pra ter bebê.
- Logo, logo você já vai ficar grávida e...
- Eu iria se me levassem.
- Ah! vocês vão ficar?... eu achei que vocês iriam pra uma casa... que perigo!
- Já pedi pra ele me ligar antes. Você dá os meus recados?
- Eu reparei que você tá dando uma engordadinha.
- Oh minha filha, seu nariz ainda tá bem tortinho né...

segunda-feira, maio 11

medo

De ficar desfigurada.
De bater o carro na estrada.
De não ter filho.

De influenciar mal.
De ter doença terminal.
De ficar burra.

De acabar meu dinheiro.
De morar num pulgueiro.
De ficar sozinha.

E quando ficar velhinha,
de ser chata, dependente e grudenta -
dessas gagás que a família não aguenta.

Tenho medo de ser: a última a morrer.

sexta-feira, maio 8

esmaltada em três atos


Ato I | Só lamento
Sofro. São três semanas sem manicure. Mãos branquelas, cutícula nhacas; pés de gárgula com vergonhosos descascados. Desesperada, propus, para um evento, uma ação de manicure express - ideal para mulheres que trabalham pra caralho, tipo você e eu. Foi recusada pelo atendimento, que é homem, que não tá nem aí pras unhas. Bestão.

Ato II | Da cor que a sogra odeia
A Gerlova enviou um site de um cara que criou esmaltes foscos, amados pelas divas do glamrock - e pelas nem tão divas, como eu: que caí de paixão fulminante. Pretos, azuis, verdes, roxos... Tanta cor supercoooool! (sabia que meu sonho é trabalhar numa indústria de cosméticos só para dar nome às coleções de esmalte?)
Essa ilustra bonita é do tal site bacanudo: http://koknockout.com/

Ato III | Eu prefiro ter um filho viado do que unhas de puta do baixio
Extra! Extra! A mocinha do novo salão lá perto de casa acabou de confirmar meu horário pra hoje. Vou voar pela Castelo, atropelar de pomba a motoboy, dar desculpa pra chefe, não interessa. Black nails, aí vou eu!

quinta-feira, maio 7

etelvino guedes

Baiano das redondezas de Feira de Santana, de uma cidade que nunca decorei qual é. Pai de nove filhos vingados. Avô de uns trinta. Tataravó de cinco. Trabalhador rural do oeste paulista. Aposentado, montou uma venda de bugigangas vindas da 25 de março: bijoux, tic-tacs, diademas e todas as modas das novelas das oito. Quando não estava na venda, estava na praça em frente de casa. Ou na varanda, sentado naquelas cadeiras de tiras coloridas de plástico. Zangava com a esposa: "ô Dona Odete, para de papear com esse papagaio". Então ela, faladeira que é, ia papear com ele, que queria assistir ao jornal em paz. Aí ele emburrava, mas depois a chamava de princesa.
Tinha fama de muito bravo, só que amoleceu com os netos. Sorte minha.
De pouca fala e riso certo, dizia que tinha tudo. Quando lhe faltou algo, faltou ar. Fomos para Mirante do Paranapanema. Mas eu não dei adeus, não quis ver. Preferi ficar com a memória da última vez em que nos encontramos, quando ele me deu um tatu de madeira de presente.