quinta-feira, outubro 14

SWU foi mais uma estrela dessa história que nomeio minha. Foi tattoo nova no CV. Foi medo. É saudade.

quinta-feira, setembro 23

Deu tristeza. Ver o blog assim, abandonado. Durante tanto tempo foi minha felicidade na vida. Foi caminho. Foi meu. Ainda é meu. Mas, que tristeza! Assim, abandonado. Deu dó.
Não sei se um dia eu volto.
Mas que eu amei, é verdade: eu amei.
(saudosismo barato inspira tattoos)

quarta-feira, julho 21

Já que literatura não vem desperta, que venha dormindo.

Madrugada de 19.07.10. Alexsandra Gerlova* e Maiume Takeuti* co-estrelaram o sonho, que foi este.

Estávamos nós três e outras pessoas que não recordo quem. Era um apê acinzentato, velho e feio que estava passando por reforma. Tinha andaimes que cobriam as paredes descascadas e o pé direito era bem alto. Poucos móveis: cadeira quebrada, cortina esfarrapada, criado-mudo sem pé. Estávamos as três sentadas num colchão de molas furado e sujo. Eu estava doente. Alê me deitou em seu peito, eu sentia os ossos das costelas na minha cara, e Mai passava as mãos rapiadamente em minhas costas, para me esquentar talvez. Havia um homem alto, parecido com o Gustavo mas não era ele. Esse homem estava nervoso, falando que tínhamos que ir embora imediatamente. Então eu olho para uma sacada da década de 1930, aquelas redondinhas e pequenas, cheias de rococós. Percebi que estávamos no centro da cidade, mas não sei de qual cidade. As ruas vazias, sem gente e sem carros. O céu igualmente cinza, daquele esbranquiçado que dói os olhos. Neblina ou fumaça em todo lugar. Então eu acho que desmaiei no sonho, por que não via mais nada mas ouvia vocês* conversando com esse homem. Essa escuridão demorou. Quando as imagens voltaram, já estávamos as três caminhados sozinhas na via Anchieta sentido SP. Apesar de não ter carros, andávamos pelo acostamento. Sabíamos que tinha mais gente conosco mas não enxergávamos ninguém. Então Alê quis provar que estavam nos vigiando e começou a correr e dançar em frente a uma câmera de monitoramento de trânsito. Enquanto corria ao redor do poste da câmera, a câmera a acompanhava. E Alê falava "tá vendo, eu sei que não tem só a gente aqui". Continuamos caminhando com a câmera nos focalizando, de costas agora - eu nos via pelos "olhos" da câmera de vigilância muitas vezes durante o sonho. Iniciamos uma subida. Estávamos exaustas, fugindo do que parecia uma guerra, uma explosão nuclear, algo muito ruim. Até este momento, eu não falava nada no sonho. A única frase que disse foi o que mudou o sonho. Mai disse "graças a Deus que a gente está viva". Então, minha fala: "graças a Deus o caralho! A gente tá viva por que a gente lutou pra isso". E com esta blasfêmia, surge um novo homem (um produtor que freelou comigo e que eu não gosto dele) que vem correndo pela subida, ultrapassa-nos e para em frente a uma guarita bem alta, como aquelas torres em fortalezas medievais - dentro da guarita, um homem coloca fones de ouvido e abaixa a cabeça pra não nos ver. Nós nos assustamos, mas o maior susto foi quando esse cara que subiu correndo puxa um revólver e atira em mim. Só que a bala passa entre eu e a Mai, num efeito que não é como o de Matrix. Como não conseguiu me acertar, esse cara vem até mim, me puxa pelo cabelo, manda eu soprar um saco plástico até virar um balão, e aí atira na minha cabeça, só que acerta o balão. Vocês duas* não podem fazer nada, só assistir a bizarrice. Como não me acertou, o cara manda eu segurar uma pedra bem no alto da minha cabeça, com as duas mãos, aí ele atira mas acerta a pedra. Então o homem me ajoelha para atirar na minha nuca, mas a bala passa do lado do meu pescoço e acerta o asfalto. Então o homem me deita no asfalto, pisa nas minhas costas, encosta o cano na minha cabeça e pow, a bala trava na agulha. Aí eu me levanto e corro, nisso o cara atira e a bala passa do meu lado mas não me pega. Quando paro e olho pra trás, o cara já tá na minha frente, olho no olho, e atira na testa. E acabaram as balas! Aí surge a maior multidão e esse cara de repente vira uma espécie de guia ou líder das pessoas e todos o seguem e eu não posso fazer nada contra ele, eu não consigo nem gritar! Aí sabe o que eu faço? Eu saio desse grupo, subo na torre e caio matando de porrada no cara que tava lá em cima, fingindo que não viu isso tudo acontecer.

Na cama, eu estou esperneando e esmurrando o ar, meu corpo reproduzindo toda a pancadaria na íntegra. É então que Flávio me acorda. Eu não o reconheço, não reconheço o quarto, dou um berro gutural, faço força pra ele me soltar, fico de pé em cima da cama. Flávio se levanta junto pra me acalmar, me abraçar. E eu só pensava em tirar vocês* da Anchieta, avisar que eu estava em casa, e que vocês não precisariam acordar.

segunda-feira, junho 14

Se é o inverno ou, se inverso, é uma quente mutação, não sei não.
Mas o blog está congelado: nada aqui, nada ao lado.
Parei, parei, parei. Facebukei.

quinta-feira, maio 27

Li tudo o que escrevi desde janeiro de 2010 e fiquei arrasada. Aquilo de ficcionalizar a vida real, não aconteceu. Aquilo de voltar à oficina de literatura para deslanchar, não aconteceu. E outras juras e promessas, não aconteceram.

Uma amiga contou que parou de fazer um curso por que "nunca terminava o que começava". Eu, nem comecei o ano.

Vou descer pra fumar.

segunda-feira, maio 24

Naquele momento entre o adormecer e a consciência, naquele breve momento que só há o sussuro dos veículos lá longe, na Cerro Corá, naquele eterno momento em que seus braços me pegam por trás e suas mãos geladas se dividem, uma entre meu seio e outra acariciando meu estômago. É neste momento que sou criativa, que sonho textos incríveis, que na manhã seguinte esqueço todos.

quinta-feira, abril 22

Fofoca de salão

- ONTEM MATEI MEU MARIDO RICO. Era isso que aquela alcatéia de inúteis dos tablóides dos periódicos vespertinos gostaria que eu tagarelasse a eles. E, claro, com a riqueza de detalhes que somente uma viúva negra seria capaz de lamentar. Eles imaginam, ouça bem, que eu teria coragem de manchar não minhas mãos, mas meus carpetes com sangue. Eles querem ouvir de mim que não me entristeço pela sua morte, mas que sofro, até a última lágrima, pelos espirros vermelhos que meu “Tolouse” ganhou para a eternidade. Em tão breve tempo, já falam que se não fui eu, foi vingança de um amante dele na própria Câmara. Um amante, Manolo! O Brasil confunde intelectuais com homossexuais. A delicadeza de um homem culto virou viadagem na boca do povo. Ele era fidelíssimo, eu sei. E eu nunca neguei sexo. Eu sempre gostei muito de sexo. Você que me conhece há década sabe que eu não seria capaz de casar com alguém que não me fizesse uivar. De uns tempos para cá, quando ele ficava mais no centro-oeste do que aqui, o máximo que eu me permitia eram umas festinhas bobas com uma das antigas meninas. E só. Tudo o que eu fazia, meu marido acompanhava. E sabia. E gostava. Eu amei esse homem. Já aturei tantos gordos engravatados noite adentro, viagens e mais viagens convivendo com a pequena tristeza que só as janelas de um jatinho carregam, cerimoniais enfadonhos com gafanhotos de smoking, esposas traídas vestidas de jóias e invejas. Tolerei tudo por amor. Então por que eu cometeria esse absurdo, Manolo? Meu marido, rico, que se foi, nessa tragédia, sem por quês, sem testamento, sem honra. Esse que gostava de mim, do jeito que sou. Do jeito que eu fui. Agora estou aqui, difamada por essas aí que me chamavam de querida até antes de ontem, usando pela segunda vez em um mês um traje-preto-completo-funeral-de-luxo, pronta para cremar o homem que me salvou. Preste atenção, meu bem: a cidade está à espreita em cada sombra, aguardando o debut da assassina. É o deleite da plebe que não me deixa caminhar ao lado do corpo de meu marido morto. Sabia que eu não vi o corpo, Manolo? Quando aconteceu, ceguei-me. Só sei do que li, da mão perfurada, do maxilar estilhaçado, da explosão da orelha esquerda. E, depois da queda, mais perfurações sem cabimento, que o pobre já havia nos deixado no primeiro alvejar.
- Que cor vai ser o esmalte?
- Vermelho queimado, por favor.

terça-feira, abril 20

papo da mesa ao lado

- Todo mundo fuça! Todo mundo sabe que é fuçado.
- Eu não! Eu? Nunca.
- Duvido que você nunca olhou mensagem do celular? Nem mexeu na carteira pra achar papel do MasterCard, nem tentou entrar no e-mail inventando senha...
- Credo, o que é isso? Você faz isso?
- Faço. Faço por que tem que fazer.
- Mas isso é que nem doença, se procurar, acha.
- E eu acho!
(silenciam)
- É...
- "É" o quê?
- O que o amor constrói, o facebook destrói.

pré-feriado

Funciona assim: você está louca para cair na noite feito louca, faz tempo. Aí tem feriado no meio da semana, que serve justamente para... cair na noite feito louca. E o universo é tão bonzinho com você: faz seu enteado querer dormir na casa de uma amiguinha, namoradinha, sei lá, uma menina aí. E a noite está bonita, gostosa, pronta para receber você. Tem até cheiro de dama-da-noite. Então você pensa em tudo: depois do Lost, eu vou. Pensa na roupa: calça preta justinha, uma regatinha, tênis para poder pular até o céu. Mas... você não vai coisa nenhuma, que é pra manter o ciclo emocional da casa estável.

segunda-feira, abril 12

Consoleta

Não deve ser mais novidade para ninguém. Mas para mim, era.
Subindo a Consolação: eu bicuda por que sabia que iria passar a noite de sábado em um dos points que estamos tão acostumados a ir (ou seja: mesmo cardápio, mesmo garçon, mesmo flanelinha...).
Mas não, houve a reviravolta!
O Merivão virou a direita na esquina do cemitério e de repente, Consoleta. O garçon do Bar Higienópolis que me contou desse nome. Trata-se desse encontro de bares e restaurantes nas ruas atrás do cemitério. Eu procurei uma definição melhor e achei essa aqui:
"À maneira do que acontece na Recoleta portenha, exalam ao mesmo tempo um ar cosmopolita e um quê bairrista. Alimentam uma certa badalação mais relaxada, com muitos clientes que chegam a pé para comer, diferente da atmosfera dos Jardins, mais chamativa, mais motorizada (...) O novo cidadão consoletano, por assim dizer, segue aquela linha urbano-moderna que, no fim das contas, é extremamente identificada com São Paulo."
Hoje quero ver se arrasto a Gerlova pra lá. Quer vir com a gente?

Autores em cena

Tá. Ainda não desisti.
Vou contar da minha volta ao circuito cultural gratuito da cidade. Cidade boa essa nossa, oferece cultura a preço de nada. É só pegar uma fila em frente ao Itaú Cultural e é o tempo de fumar um cigarro e pronto, já tem ingresso na mão e logo está sentado na cadeira do teatro.
E foi programa pra família toda. Flávio entra de cabeça nas minhas maluquices, foi nessa também. E agora incluo o filhote: Gabriel foi fingindo 16 anos, mas que censura de idade a arte tem?
O que vimos: AuTORES EM CENA, curadoria do Marcelino Freire.
O que é: um diretor é convidado para colocar em cena um autor e esse autor interpreta o personagem que criou para a cena
Foi assim:
1) Nilton Bicudo dirigiu Lourenço Mutarelli, que escreveu e atuou em "O OUTRO". Meu preferido da noite tratou da tragicomédia que é a morte.
E 2) Mutarelli dirigiu Xico Sá em "SEGUNDO ATO". Divertido por que falar de sexo e estômago sempre é divertido - mesmo para o guri de 12 anos ao meu lado, que ouviu lições do tipo "não diga que está louca pra foder, diga 'estou tão nervosa ultimamente'; não diga que a viu fodendo por todos os buracos, diga 'é uma mulher eclética'.
Vamos fingir naturalidade e amém.
Depois fomos para a Consoleta. Mas isso é outro post.

desistência

Mal passo por aqui. Mas há tanto para escrever.
Contos ótimos sobre a reforma da casa, por exemplo. O dia que 60 anos de sujeira no teto caíram sobre mim. O dia que a lata de tinta explodiu e tingiu o carro. O dia que o chuveiro cuspiu fogo. O dia que mandei o telhadista tomar no cu. Mas será que interessa?
Tenho questionado se vale gravar algo aqui. De tanto estar longe acho que o povo habitué desistiu de me visitar, de ler seja lá qual desacato eu colocar aqui.
Talvez esteja chegando o fim.

terça-feira, março 16

mulheres que conheci recentemente e o por quê de eu não admirá-las

M.P., aparenta 38 anos, separada, dois filhos adolescente
Situação em que a conheci: ex-proprietária da minha casa
Por que não é admirada: ao solicitar mais dias para deixar a casa, pediu por Deus, pela Virgem, por todos os santos, falou que não tinha pai, não tinha mãe, não tinha irmãos. Estava quase conseguindo o prazo extra, mas perdeu o benefício ao soltar a frase "eu nunca fiz nada disso, sempre foi meu marido que resolveu todos os problemas para mim". Pela bunda-molice, não dei trégua: teve que se virar na marra e sair no dia previsto em contrato.


F., aparenta 40 anos, casada, duas filhas crianças
Situação em que a conheci: quando ela bateu no meu carro
Por que não é admirada: a desorientada, ao dar ré para fugir da fila de estacionamento do Delboni, oito da manhã de um sábado, simplesmente não viu que meu carro estava atrás. Vá lá, acidentes acontecem. Trocamos celulares, ela se dispôs a pagar. Duas horas e um rasgo no para-choque depois, ela liga informando "sabe o que é, meu marido me avisou que eu tenho seguro do meu carro e aí eu descobri que o seguro paga". Pela alienação, não teve como me conter: meu, em que caralho de mundo você vive?

R., aparenta 27 anos, recém-casada, sem filhos
Situação em que a conheci: nova moradora do antigo apê
Por que não é admirada: essa menina é um doce. Continuo sua fã, mas ela perdeu muitos pontos depois do diálogo abaixo:
- Vocês vão deixar essa caixa?
- Não é uma caixa. É um filtro.
- Ah, um filtro. E como é que limpa?
- Tem que chamar a empresa para limpar.
- E como eu descubro qual é a empresa?
- Olha, tá escrito aqui: Filtros Europa.
- Filtros Europa? Nunca ouvi falar.

Meninas, não façam isso com a vida de vocês.

cala-te boca

Muita gente me pergunta por que eu parei de escrever.
Eu cheguei a colocar no blog um texto altamente confessional, auto-biográfico desses de fazer passar vergonha. Aí perguntei a um dos envolvidos na história se tudo bem publicar. Pediram para eu tirar. Eu tirei. "A noite dos mortos vivos" não durou quinze minutos aqui e foi embora, morreu de vez no mundo virtual.
Isso faz uns dois meses.
Agora volto para o curso de criação literária, volto ao Mestre Marcelino Freire.
E, no primeiro encontro, quando questionada sobre qual projeto eu desenvolvi no ano passado, numa burrice sem tamanho, eu começo a falar - adivinhem - dessa nova vida, desse monte de gente, dessas duas sogras, desse enteado, desse marido, dessa falecida, dessa casa nova, desse cachorro que nem veio mas já tem nome, dessa terapia familiar inteira que ninguém tem que saber mas que eu, bocuda, saio falando por aí.
Tá vendo só, falei de novo.

de um amigo

sexta-feira, fevereiro 19

"love you" o caralho

Põe a culpa na testosterona, Leninha! Fala que é por causa da Seleção Natural. Não é você que vive vendo aqueles programas de instinto selvagem na TV a gato? Não foi você que me contou que quanto maior o tamanho desse dedo bobo que a gente tem na mão, mais hormônio de homem o cabra recebeu na barriga da mãe? Então não liga, boba. Não fala nada. Não quebra nada. Fica do jeito que você sempre ficou. Nada de fuçar no celular. Nada de remexer nos bolsos. E se achar mais algum papelzinho, dobra e põe perto da carteira pra ele ver e não esquecer de pegar. Faz agrado, mulher. Compra cerveja de garrafa. Leva a Brasília pra encher o tanque. Manda engraxar o pisante. E tudo com seu dinheiro, heim. Tudo de surpresinha. Você tem que levantar as mãos para os céus, isso sim. Tanta maluca aí pela noite, tanta desvairada com decote até o umbigo na firma. E onde é que ele deita a cara pra dormir? Na sua casa, Leninha! Nem que seja no sofá, mas é debaixo do seu teto. Outro dia a Dora contou que conseguiu três gavetas no roupeiro só pra ela. Não é um sonho? Uma gaveta de meia, uma de calcinha e outra só pra sutiã. Tudo separadinho, pensa só. E não teve segredo. Foi só fazendo agradinho, pedir com jeitinho e ter que deixar a primeira gaveta pro marido guardar as cuecas e meias dele. Ela terminou contando que a última gaveta também foi exigência do trato. Aí eu perguntei "pra pôr o que se já tá tudo na gaveta de cima?". Afe ela fez uma cara e emburrou o bico dizendo que não sabe e tem raiva de quem sabe. Viu só? Dora é que é mulher de verdade. Não é bonita, mas é de uma obediência de dar inveja. É um espelho para toda casada! Foi parar num telemarketing que é pra ninguém olhar na fuça dela, só por isso que o marido deixou ela sair daqui. Nós duas é que somos umas trouxas que vamos morrer cegas de tanto enfiar linha em buraco de agulha. Mas ouve o que eu tô te dizendo, Leninha: chega em casa e faz carne-louca bem molinha, passa no seu Joaquim e compra uns dois pães branquinhos pra raspar no prato depois. É nos detalhes, Leninha, nos detalhes que se conquistam três gavetas.

quinta-feira, fevereiro 18

Minha bonita

Depois de limpar as marcas de pasta de dente na pia, escarrou algo acinzentado nas mãos e misturou vagarosamente as substâncias díspares. Preparou com o frescor da menta e a secreção pigarreada um único unguento que tornou-se o alívio que o rosto pisoteado pedia. Deixou o elixir repousando na palma direita enquanto o indicador esquerdo apontava para si sem unhas lascadas nem julgamento. Pincelou a mistura inicialmente no corte mais leve da maça do rosto, em movimentos circulares. Repetiu-se algumas vezes até tomar toda a superfície, da testa ao queixo.

O espelho a sua frente imitava teia de aranha. Viu-se partida. Levou o mesmo dedo indicador até as fissuras do vidro e acariciou cada fenda. Sentiu todos os cortes, refez todo o desenho. Seria uma tentativa de recompor-se. O que conseguiu foi se sangrar.

A pasta seca ardia e caia esfarelada pelo queixo e peito levando consigo filetes da pele que um dia alguém tanto quis. Então se fez bonita. Com o dedo pingando vermelho pôs batom e blush. Abriu a gaveta e cavou umas fivelas, um pente. Repartiu o cabelo com ares de Madalena e não gostou. Preferiu um coque-banana displicente, desses que viraram moda recente. Moldou farelo por farelo do que havia no rosto arenoso até criar seu novo reflexo. E sorriu uns dentes quebrados ali misturados na pia, com a pasta.

para o projeto coletivo literatura ordinária
mais em as canções de f. | http://fellipefernandes.wordpress.com

sábado, fevereiro 13

Sinhá rainha

Sinhá Rainha pegou uma quinzena e foi mudar.
Falou para o chefe que não ia levar notebook nem celular.
Falou pros clientes que ia mas já ia voltar.
São só quinze dias, dias que passam já.

Mas hoje Sinhá Rainha começou sem saber.
Sem saber muito direito o que tinha que fazer.
Já mudou de lugar tantas vezes sempre com diferentes por quês.
Por que hoje é diferente de tudo que ela podia viver.

Quando a Sinhá Rainha fez arruaça pelo que está por vir,
tinha gente barro e ruindade não deixando ela ir.
Mas tem pai de santo, Judas Tadeu e seicho no ie dizendo sim.
Ela vai, ela vai, ela vai. E ela vai rir.

Então Sinhá Rainha não queria olhar para os lados.
É que tinha medo de pedras, trovoadas e mau-olhado.
Buscou caixas de papelão, buscou papéis amassados.
Pôs um pé na frente do outro e seguiu de topete dourado.

quinta-feira, janeiro 28

estou indo.

Livro número 2 - Registo Geral - ficha 02 - verso
(...) e 34,5% a Vanessa Guedes de Souza, RG número tal, CPF número tal e tal, brasileira, solteira, maior, publicitária, residente e domiciliada na cidade de São Paulo.
Em 20 de janeiro de 2010.
Fim dos atos praticados nesta matrícula.
Vide certidão na próxima folha.
Assim que fazem quando enfim se realiza o desejo do lar, doce lar.

terça-feira, janeiro 5

segunda-feira, janeiro 4

vazão

Tecnicamente, sou amasiada. Quando preencho um cadastro, continuo marcando xis no quadradinho de solteira. Mas na prática, meu bem, tudo mudou em 01 de março de 2009, quando enfim fui morar na casa do gajo.
Não por coincidência, a partir desta data minha produção literária começou a naufragar. Para quem se propõe a ser um escritor ou algo perto disso, é torturante viver um turbilhão de novidades e optar por não escrevê-las. O motivo: uma precária tentativa de manter privada a vida privada.
Mas agora apertei a descarga.
Autores e artistas gritam aos quatro cantos que a vida pessoal é fonte de inspiração. Mesmo sem ser autora nem artista, sempre foi assim para mim. Uma frase, um pedaço de diálogo e pumba: inspiração. Como uma amadora como eu poderia passar ilesa à tentação de descrever o cotidiano na pele de uma recém-juntada que de quebra vira madrasta de adolescente?
Estou explodindo. Tenho dez meses de histórias para contar.

domingo, janeiro 3

passa a régua

Em 2009 eu não fiz festa de aniversário.
Não mandei cartão de Natal. Não escrevi coisa que preste.
Deixei a literatura debaixo do capacho que esqueci na porta do meu antigo apartamento lá no Brooklin.
Xinguei uma pá de gente, briguei com um bando de cretinos, desisti de muitas pessoas. Tinha jurado paciência.
Não paguei a última conta da Telefônica e, por mais que ligue no call-center, eles não me mandam a segunda via.
Fiz piada com a sogra. As sogras, aliás. Fiz pirraça pra diacho, reclamei horrores, vez ou outra me arrependi.
Tive diarreia sempre que o assunto era grana pra comprar a casa. Tive piriri por conta da herança alheia. Tive certeza que me acham usurpadora. Eles sorriem.
Não fiz tudo que minha mãe pediu. Não fiz tudo que o Flávio pediu. Não fiz tudo que meu chefe pediu. Mas a gente sempre deve mesmo.
Falei errado. Conjuguei errado. Esqueci como escrever várias palavras. Cuspi barbaridades pelas amígdalas.
Meu sonho era adotar o lifestyle "caguei, andei e fiz moonwalk".
Fui chamada de menina várias vezes.
Fui uma boa menina má.

Em 2009 ganhei festa surpresa de aniversário. Mas descobri antes.
Não mandei cartão nem aceitei mais um cartão de crédito. Não escrevi coisa que preste.
Busquei a literatura em alguns encontros com Marcelino Freire e fui à FLIP pela primeira vez. E mudei de casa, casei.
Elogiei uma pá de gente, fiz festa com um bando de amigos, desisti de muitas pessoas por que já disse, paciência tem limite.
Fechei o ano no celestial azul bancário. Atei-me a um financiamento.
Fiz piada com as sogras, com os amigos, com os clientes. Fui repreendida. Vou continuar fazendo.
Tive diarreias por que não tive coragem de falar tudo o que sinto. E continuarei me esvaindo em merda e vomitando toda vez que ficar nervosa a esse ponto. Meu corpo sabe expurgar melhor do que eu. Vou rir por último.
Não fiz tudo o que os outros esperam que eu faça. E já entendi que não tem como fazer mesmo.
Falei errado, é verdade. Mas eu acho que pensei certo.
Meu sonho era adotar o lifestyle "caguei, andei e fiz moonwalk", mas não consegui tamanho desapego.
Fiquei puta da cara por me acharem uma menina bonitinha, engraçadinha e burra. Então parou aqui.
Sou uma boa mulher.