quinta-feira, março 19

Hemisférios

Num segundo antes tentou avisar. Agitar os braços. Gritar. Sem tempo nem domínio, jogou-se. Todo o corpo, em desordem, esparramado pelo cinza. O mesmo cinza gelado que toda vez cisma em meter pedregulhos na sua pele. Melhor assim. Ruim são os dias em que o cinza ferve e a pele esfola e derrete. Não tem reza que cure.

Agora esmurra a cabeça. Treme. Contrai tudo. As mãos viradas para dentro tentam agarrar os pulsos. Quase não se nota as pernas dando saltinhos curtos. Vem crescendo um cuspe branco, denso. Parece a espuma do córrego ali debaixo. Enquanto a língua se enrosca, ele mastiga a própria carne com um resto de dentes podres. É uma boca que ainda teima em sorrir.

Luzes sobre a cena e uma certa piedade blasé. Um ou dois fizeram o esforço de ter alguma paciência. Não mexam. Não façam nada. É assim mesmo. Já vai passar. Mas não passava. Demorou demais, já foram quatro ou cinco sinais. Vermelhos de pressa, tinha gente dizendo que foi de caso pensando, achando que aquilo era só o que faltava pra foder de vez com o resto do dia. Sai daí, porra! Tem buzina vaiando o espetáculo.

O corpo, que tinha sido virado de lado por algum pé piedoso, esbravejou gemendo lamúrias que ninguém pôde ou quis saber. Foi assim que chamou mais atenção para si. Vai ver era isso mesmo: queria mostrar a calça cor de negrume se tingindo de borrões. Mijo escorrendo para o meio-fio. E junto, o fedor. O fedor de quem está cagando pra aquela gente apressada.

[tema: cena secreta. adivinha o que é.]

Um comentário:

Anônimo disse...

Praticamente um tratado de medicina. Tá virando especialista hein. Alzheimer, agora...
Vem pra Londrina dar uma aula!!!
Bjs
Saudade e até mais hein.