quarta-feira, setembro 24

Garoa

Que engraçado esse trem que anda por debaixo. Como será que faz pra pôr pedra no trilho? E essa gente toda de bico, é velório? Ai que eu não consigo correr como você anda, me espera! Sua mão tá tão gelada... Esse túnel não tem sol no fim.

Era o primeiro dos túneis sem sol. A mulher ao lado, que lhe carrega apressada pela mão, sorri o sorriso dos conformados. Idas e vindas e idas e vindas e 1987 chama para mais uma esperança, mais uma, mais uma.

As pupilas que chafurdaram na estrada, por tanto tempo que parecia fuga sem fim, chegam enfim ao templo de gigantes emburrados que comem o ar com seus berros e beijos de fumaça. "A Maria Fumaça passa aqui?" Não passa, meu bem, não tem. Maria fumaça será você daqui a uma década.

Mas agora, sonha que o prédio da grande avenida é escorregador. Pede pra moça de mão fria te levar até lá em cima pra que você deslize nesse novo lugar que vai chamar de lar. Daqui a uma semana, você vai ao parquinho e vão rir do seu jeito de falar. Em um ano, você vai entender que as senhoras de branco não são as mães das crianças que não querem você na gangorra. Daqui a muito tempo você vai notar que os cachorros do bairro onde o homem da casa achou trabalho têm mais valor do que quem os leva para cagar. Mas muito antes disso, você vai sofrer quando entender que sua presença não é bem-vinda na piscina do condomínio.

Enquanto você não sabe, vive criança. Em minutos você vai chegar no quarto-e-sala que vai te abrigar até ficar grande. Antes, você vai correr na faixa branca da avenida com nome de mulher e vai passar em frente aos casarões de gente importante. Uns meses pra frente, você brincará com um cachorro que logo vão te tirar por que o vira-lata maldito era muito barulhento. E tudo será bonito até o dia que você cair do gira-gira e quebrar o nariz. Ninguém vai notar.

Os Natais atrasados e os dias das crianças esquecidos não doerão mais que a humilhação do tombo mais doído de toda sua breve vida até aqui. Você vai se esconder de vergonha atrás da árvore e vai procurar pedras para enfileirar nos trilhos do trem que não tem, meu bem, não tem, meu bem, não tem.

[texto do sarau de 23set]

Um comentário:

Débora Costa e Silva disse...

Lindo o texto, Van!
Parabéns, como sempre arrasando...até no drama você tem umas pitadas de humor, nem que de leve, mas tem e eu adoooro!
Beijão!